Marco do Saneamento: Sozinho não vai

As metas do festejado Marco Regulatório do Saneamento são para valer ou são números para boi dormir?

Para muitos de nós que estamos em isolamento, a redução das atividades rotineiras, físicas e sociais, tem desequilibrado nosso organismo. A capacidade aeróbica reduz-se. Aumenta a ansiedade, diminui o apetite, enfim, somos um organismo complexo onde muitos fatores atuam em simultâneo para o nosso equilíbrio.

Quando o crescimento das cidades industriais se tornou um problema, os estudiosos do urbano buscaram no corpo humano a analogia para explicar a complexidade da nova cidade. Criou-se um novo conceito, a urbanística. Já no século XX, estruturou-se nova disciplina, o Urbanismo.

O Urbanismo compreende a cidade como um organismo vivo, de alta complexidade, cujos elementos estruturantes, tais como a mobilidade, a moradia, a infraestrutura, o saneamento, são interdependentes e precisam ser tratados em conjunto.

No Brasil, o Urbanismo teve algum prestígio em meados do século passado. Os municípios criaram serviços próprios, elaboraram-se planos diretores, buscou-se ordenar as cidades ainda limitadas.

Foi quando a explosão demográfica mudou radicalmente a questão. O país cresceu como nenhum outro, e as cidades se multiplicaram. A população urbana saiu de 12 milhões, chegando a 180 milhões de habitantes.

Dezenas de metrópoles emergiram nesse período, criando-se um patrimônio material e social inestimável.

Depois de um incipiente serviço federal para tratar das cidades, nos anos 70, o Brasil ignorou completamente o tema. Por quatro décadas tem dado as costas para suas cidades.

Se o Urbanismo é a disciplina que estuda a cidade, ao Planejamento pressupõe-se o trato do conjunto de cidades e do território. Nada disso existe.

As efêmeras políticas que de vez em quando se referem ao urbano são setoriais e desconhecem a interdependência entre elas. Assim, programas como o Minha Casa Minha Vida prejudicam ao invés de ajudar as cidades.

Agora se celebra o Marco do Saneamento, com metas robustas: universalizar a água tratada e alcançar 90% de esgoto coletado e tratado até 2033.

Mas como essas metas se ajustam aos demais fatores estruturantes da cidade? Como oferecer metas para o esgoto no abstrato, pelas estatísticas, sem considerar a dinâmica das cidades? Como ignorar que a rede de esgoto sem rede de drenagem e sem caminho pavimentado não se sustenta?

Já sabemos também: a população não aumentará. Mas a cidade construirá até 2033 cerca de 30% a mais de moradias, devido à diminuição do tamanho das famílias. Onde serão construídas?

Se não houver planejamento que crie e articule políticas públicas, que ajude a cidade a não expandir, as novas moradias seguirão o modelo das últimas décadas: uma expansão predatória, em baixa densidade, que amplia a miséria e torna insustentáveis os serviços públicos. Então, chegaremos em 2033 e lamentaremos que a meta não tenha sido alcançada.

O planejamento urbano e territorial é uma tarefa de Estado que precisamos construir tanto para rompermos o ciclo de pibinhos pífios que nos assolam há tempos como para reduzir a desigualdade intraurbana, que a pandemia escancarou.

Até aqui os governos têm ouvidos moucos para o tema urbano. Ignoram o enorme potencial que o investimento em cidades significa para a economia e para o desenvolvimento social.

Talvez as novas empresas de saneamento possam compreender que o sucesso de seu desempenho depende da inserção do setor no âmbito da cidade complexa, a ser planejada e ser tratada. E possam ajudar na mudança de rumo. Sem coordenação de políticas, o esforço será frustrado. Sozinho, não vai.

O Brasil não precisa de outras décadas de abandono da cidade. Precisa qualificá-las para alcançar o desenvolvimento.

*Coluna Opinião

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