Marco legal do saneamento básico é inconstitucional e coage municípios

A aprovação atropelada pelo Congresso Nacional da Lei 14.026/2020, que atualizou o marco legal do saneamento básico em julho deste ano e ampliou a possibilidade de privatização desse serviço, viola diretamente disposições da Constituição Federal ao extrapolar as competências da União e esvaziar as competências dos municípios para regular, organizar e prestar serviços de interesse local — como é o caso do saneamento básico.

Infringe, ainda, regras criadas para impedir o abuso de poder econômico por parte do Estado, além de descumprir previsões do Pacto Federativo ao impor uma intervenção de ordem federal aos municípios. Esse é o conjunto de violações apresentadas na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.583, ajuizada no dia 15 de outubro no Supremo Tribunal Federal (STF), pela Associação Nacional Dos Serviços Municipais De Saneamento (Assemae).

A Assemae, que tem dois mil municípios associados, é uma entidade que atua na melhoria das capacidades administrativa, financeira e de gestão dos gestores públicos que atuam com o saneamento básico no Brasil.

No entendimento da associação, o marco legal – ou, melhor dizendo, ilegal – atropelou discussões que vinham sendo costuradas há anos por organizações do setor e pode trazer prejuízos de décadas para a população brasileira, na medida em que transforma o saneamento básico em um balcão de negócios.

Segundo a petição inicial da ADI, assinada pelos advogados Ivo Teixeira Gico Jr, do Gico, Hadmann & Dutra Advogados, e Francisco dos Santos Lopes, do departamento jurídico da Assemae, o novo marco legal do saneamento é inconstitucional por:

I. Impor no §2º do art. 4º-A as chamadas “normas de referência” que deverão ser estabelecidas pela Agência Nacional da Água (ANA) e, em seguida, no §6º do mesmo artigo definir que a agência reguladora nacional investigará o “cumprimento das normas de referência”, que, naturalmente, deveriam ser apenas de referência;

II. Esvaziar outras agências regulatórias do setor e dar poderes nacionais para a ANA ao dispor no §7º do art. 4º-A que a agência nacional “zelará pela uniformidade regulatória do setor de saneamento básico e pela segurança jurídica na prestação e na regulação dos serviços”. Neste sentido, quando a agência passa a ter competência para uniformizar as regras jurídicas, a União está extrapolando a sua competência constitucional;

III. Usar no art. 3º uma estratégia de coação financeira ao estabelecer que a ANA manterá atualizada a relação das entidades reguladoras que adotam as normas de referência nacionais “com vistas a viabilizar o acesso aos recursos públicos federais ou a contratação de financiamentos com recursos da União ou com recursos geridos ou operados por órgãos ou entidades da administração pública federal”;

“Se o referido dispositivo permanecer no ordenamento jurídico pátrio a submissão ampla e irrestrita dos municípios e dos entes regulatórios municipais, intermunicipais e estaduais às regras da ANA passa a ser uma conditio sine qua non [condição] para o acesso aos recursos federais e aos recursos que, apesar de não serem federais, são geridos por entes da administração federal, como o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço”, afirmam os advogados.

IV. Delegar à ANA, nos termos do art. 3º, o poder de, inclusive, limitar quais as formas que o município poderá utilizar para subsidiar as taxas diferenciadas que atualmente podem ser cobradas das populações de baixa renda, excluindo a capacidade do gestor público de fazer política pública;

V. Ferir a autonomia dos municípios ao impor no art. 3º que a única forma de delegar o serviço de saneamento básico seja por meio de concessão, extrapolando a competência da União ao proibir a gestão compartilhada do serviço de saneamento por consórcio ou convênio;

O advogado explica que o artigo 175 da Constituição Federal diz que o município pode delegar o serviço por concessão ou autorização. Nestes casos, é exigido um processo de licitação. Ao mesmo tempo, o artigo 241 da Constituição diz que o município pode se associar a outros entes da federação para prestar o serviço, por meio de convênio ou contrato de gestão. Nestes casos, não há a necessidade de licitação.

“O que acontece é que existe essa opção na Constituição, mas o marco legal do saneamento básico diz que não pode mais. Segundo a nova lei, ou o município presta sozinho o serviço ou ele entrega a titularidade do serviço. Basicamente você está forçando a privatização”, diz Teixeira.

A Assemae não é a única a questionar no STF a nova legislação do saneamento. Na ADI 6.536, os partidos oposicionistas PCdoB, PSOL, PSB e PT requerem a declaração de inconstitucionalidade do novo marco legal do saneamento como um todo, além da suspensão imediata da legislação.

Há, ainda, outro pedido de declaração de inconstitucionalidade pendente de análise pelo STF, que foi ajuizado pelo PDT. Trata-se da ADI 6.492. As três ADIs estão sob relatoria de Luiz Fux, que já negou os pedidos de cautelar, alegando não ter verificado, no exame preliminar da ação, perigo da demora ou plausibilidade do direito que justifiquem a concessão de liminar.

“O PDT pediu a cautelar e ela já foi negada, mas no nosso caso, não pedimos para suspender a lei inteira, apenas pedimos que não pudesse ser condicionado o acesso aos fundos federais à submissão das regras da ANA ou à adoção de concessão na esperança que dessa vez dê”, conta Teixeira.

Recentemente, o ministro Luiz Fux, relator, apensou a ação da Assemae à dos partidos e adotou o rito do artigo 12, da Lei 9.868/99, que possibilita o julgamento do mérito do processo direto no plenário. O caso já foi liberado para pauta, mas ainda não há data de julgamento. Milhares de gestores municipais esperam que o STF suspenda o quanto antes as inconstitucionalidades da nova norma e lhes devolva a autonomia ilegalmente usurpada.

Portal JOTA

Projeto de autonomia do Banco Central pode ser alterado pela Câmara

Aprovado pelo Senado, o projeto de autonomia do Banco Central pode sofrer modificações na Câmara. O partido Novo, de viés liberal, se prepara para tentar enxugar a proposta que recebeu aval dos senadores para reduzir os chamados acessórios que foram colocados para o BC.

O texto mantém o controle dos preços como objetivo central, mas inclui ainda duas novas metas acessórias, sem prejuízo à principal: suavizar as flutuações do nível de atividade econômica e fomentar o pleno emprego no País. O governo concordou com a redação da proposta, apesar de o BC ser historicamente contrário a ampliar o escopo da atuação. 

Copom
Uma das polêmicas que cercam a autonomia do BC está na meta acessória de banco de fomentar o pleno emprego. Foto: Raphael Ribeiro/BCB

“Há a questão sobre quais são os objetivos do Banco Central. Um deles é o pleno emprego, isso não é papel do BC”, disse o líder do Novo na Câmara, Paulo Ganime (RJ).

Atualmente, cabe ao Banco Central garantir o poder de compra da moeda nacional, zelar pela liquidez da economia, manter as reservas internacionais em nível adequado, estimular a formação de poupança, zelar pela estabilidade e promover o aperfeiçoamento do sistema financeiro. 

A bancada do Cidadania na Câmara ainda quer analisar o projeto com mais atenção, mas a legenda é defensora do duplo mandato. “Nós achamos que cabe também ao BC olhar pelo desenvolvimento econômico, não dá para ver a questão da estabilidade da moeda, isoladamente do desenvolvimento”, disse o líder do partido, Arnaldo Jardim (SP). 

Mandato fixo

A proposta ainda estabelece mandatos de quatro anos, prorrogáveis por mais quatro, para os diretores da instituição que hoje podem ser nomeados e demitidos livremente pelo presidente da República. Caso o projeto seja aprovado neste ano e Roberto Campos Neto seja indicado em 2021 para permanecer no cargo, ele poderia ficar, ao todo, dez anos à frente do BC.

Para o líder do PSDB na Câmara, Carlos Sampaio, a proposta dos senadores deve ser mantida. “Significa dar mandatos estáveis à diretoria do banco, mantendo-o preservado de pressões políticas”, disse. Para ele, a autonomia do BC trará, assim, mais segurança aos investidores brasileiros e estrangeiros e maior solidez ao sistema financeiro nacional.

Os deputados devem ter ainda tempo para se debruçar sobre o texto aprovado pelos senadores. A expectativa é de que o texto chegue ao plenário da Casa somente depois do fim do primeiro turno das eleições municipais, no dia 15.

Na Câmara, existe outra proposta de autonomia do BC, a do Projeto de Lei Complementar n.º 112, enviado pelo governo. Sob a relatoria do deputado federal Celso Maldaner (MDB-SC), a proposta conta com o patrocínio do presidente da Câmara, deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ). No entanto, em meio à pandemia do novo coronavírus, ela acabou ficando parada. Uma diferença fundamental do projeto da Câmara é que ele prevê apenas dois objetivos para o Banco Central: estabilidade de preços e estabilidade financeira. 

O Estado de SP

Encontro na casa de Maia traça estratégia para candidatura à reeleição

Aliados do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), já se mobilizam para construir sua candidatura à reeleição. O assunto foi tratado em jantar na casa de Maia, na terça-feira, 3, após diagnósticos preocupantes sobre crise política e econômica, avanço do Centrão na Esplanada e impacto da disputa pela Casa Branca no governo de Jair Bolsonaro.

O grupo de Maia trabalha com um cenário no qual o Supremo Tribunal Federal (STF) lavará as mãos e decidirá tratar a eleição para o comando da Câmara e do Senado, marcada para fevereiro de 2021, como assunto a ser resolvido pelo próprio Congresso. Sem um nome competitivo até agora para se opor ao deputado Arthur Lira (Progressistas-AL), candidato à presidência da Câmara com a chancela de Bolsonaro, os “rodriguetes” avaliam que o próprio Maia deve enfrentar o líder do Centrão. 

Rodrigo Maia
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia Foto: Najara Araújo/Câmara dos Deputados

O argumento usado por políticos, no encontro de terça-feira, foi o de que não se pode entregar a Câmara para o Centrão. Em um passado não muito distante, esse bloco de partidos foi carimbado por Bolsonaro como “velha política”, mas hoje apoia o presidente e tem cada vez mais ampliado sua fatia de poder com a ocupação de cargos. “Num governo sem rumo como o de Bolsonaro, ganhar a Câmara é o mesmo que ganhar o controle do governo”, disse ao Estadão um dos participantes da reunião. “As circunstâncias exigirão a candidatura de Maia”.

O presidente da Câmara tem afirmado que não é candidato à reeleição. Nos últimos dias, no entanto, mudou um pouco o tom e disse apenas que não é hora de tratar do assunto. Nessa toada, acusou a própria base do governo de estar obstruindo votações importantes na Casa no momento em que a economia parece estar entrando em colapso. Por causa dessa tensão entre os grupos de Maia e Lira, até agora a Comissão Mista de Orçamento (CMO) não foi instalada. A briga pelo comando da CMO tem como pano de fundo a disputa por votos para a presidência da Câmara, a menos de três meses. 

Marcaram presença no jantar na casa de Maia dois deputados do seu grupo com interesse em concorrer à cadeira ocupada por ele: Baleia Rossi (SP), presidente do MDB, e Aguinaldo Ribeiro (Progressistas-PB), adversário de Lira. Lá estava, ainda, Elmar Nascimento (DEM-BA), nome defendido pelo grupo de Maia para comandar a CMO. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) também chegou para a conversa, assim como os ministros do Supremo Gilmar Mendes e do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas.

A certa altura houve ali comentários sobre o aumento do isolamento do Brasil no cenário internacional em caso de vitória de Joe Biden na eleição para a presidência dos EUA e a necessidade de reorientações na política externa e no meio ambiente.

Vizinho de Maia, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) não participou do encontro, mas tem feito alguns movimentos ao lado do deputado.  Alcolumbre é candidato declarado a novo mandato à frente da Casa e partiu dele a iniciativa de acionar o Supremo para dar um veredicto sobre o imbróglio. Atualmente, a Constituição proíbe a recondução dos presidentes da Câmara e do Senado na mesma legislatura.

Na prática, Maia ainda está fazendo contas com o objetivo de averiguar a possibilidade de agregar a esquerda e “desgarrados” do Centrão para esse projeto. Se lançar mesmo a candidatura, como tudo indica, o PT e o PSDB também vão apoiá-lo para o quarto mandato consecutivo à frente da Câmara.

Em viagem a Alagoas, nesta quinta-feira, 5, Bolsonaro elogiou a “articulação política” de Lira. O deputado alagoano não o acompanhou por ter contraído coronavírus. “Mais do que fazer articulação, é uma pessoa sempre pronta, sempre alerta a trabalhar pelo seu Estado”, afirmou o presidente em referência a Lira.

Não passaram despercebidos, nos últimos dias, alguns sinais do que o grupo de Maia chama de “perseguição”. Em setembro, a Procuradoria-Geral da República (PGR) recuou em denúncia de corrupção passiva contra Lira, pedindo o arquivamento do caso. Um mês depois, em outubro, a PGR reabriu duas investigações contra Maia sobre pagamentos em caixa 2 da empreiteira OAS.

Nos bastidores, políticos observam que o embate na Câmara tem tudo para repetir a guerra em que se transformou a eleição para a cúpula do Senado, em 2019, quando Alcolumbre ganhou o comando da Casa.  À época, o STF entrou no confronto, a primeira votação foi anulada depois de muita confusão e Renan, veterano ex-presidente do Senado, acabou renunciando à candidatura. Quem sobreviver verá o próximo capítulo.

O Estado de SP