Na sessão de encerramento do Ano Judiciário de 2020, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Luiz Fux, fez uma ode ao recomeço. Ao atribuir equivocadamente a Carlos Drummond de Andrade texto que inclui a sentença “o que importa é que é sempre possível e necessário recomeçar”, Fux parece ter tido um lampejo da própria gestão em um ano adverso fora e dentro do tribunal, e entoado um mantra de esperança para 2021.
Luiz Fux assumiu a presidência do Supremo seis meses depois do início da pandemia do coronavírus no Brasil. A fase mais atribulada havia sido enfrentada por Dias Toffoli: adaptação e primeiras medidas. Mas, de 10 de setembro até aqui, a Corte seguiu em ritmo lento. Os julgamentos de impacto foram poucos, Fux já enfrentou discussões em plenário, não participou da escolha de Nunes Marques, substituto de Celso de Mello, e o próximo ano deve seguir com alguns meses, ao menos, sem o contato presencial entre os ministros.
Depois ainda do encerramento, mais pelo menos dois momentos de tensão. O ministro Alexandre de Moraes pediu informações ao presidente da Casa em Habeas Corpus coletivo impetrado contra a decisão monocrática de Fux, dada há quase um ano, que suspendeu o juiz de garantias. Em tese, não caberia HC contra monocrática de ministro do Supremo.
A três dias da virada do ano, Fux exonerou o secretário de serviços integrados de saúde da Corte, o médico Marco Polo Dias Freitas. A exoneração ocorre após um pedido da Corte para que a Fiocruz reservasse 7 mil doses de vacinas contra a Covid-19 para ministros e servidores da Corte. A Fiocruz negou a requisição. Na semana passada, no entanto, Fux havia justificado o pedido das doses de vacina em entrevista à TV Justiça como forma de assegurar os trabalhos.
O tema das vacina também foi o mote da última semana de julgamentos antes do recesso judiciário, dedicada ao debate sobre obrigatoriedade da vacinação contra Covid-19. Na semana anterior, no entanto, o assunto já dominava o noticiário, as discussões entre especialistas, especialmente pelo início da imunização na Inglaterra e nos Estados Unidos e a ausência de um plano para o Brasil. As sessões dos dias 9 e 10 de dezembro foram dedicadas a outros temas: indisponibilidade de bens dos devedores da Fazenda Pública e alteração das alíquotas da contribuição ao PIS/Pasep e Cofins.
Antes de assumir, Fux afirmou que daria prioridade à agenda econômica, mas também aos temas relacionados à Covid-19, como não poderia deixar de ser. Especialmente às pautas que se relacionem à segurança jurídica e econômica do trato da pandemia. Ele deu seguimento à iniciativa de Toffoli de divulgar antecipadamente a pauta do plenário. Esta previsão, entretanto, não foi seguida à risca. Temas urgentes se sobrepõem e ela depende, também, da cadência de votações no plenário.
Além disso, a pauta do colegiado não está mais completamente submetida ao presidente da Corte, já que com a ampliação das competências do plenário virtual, os ministros podem pautar os temas que desejam votar logo para este ambiente, que não passa pela definição da presidência, o que reduziu o poder de agendamento de Fux.
Fux julgou a autorização da privatização das subsidiárias da Petrobras sem autorização do Congresso. Mas não concluiu a forma do depoimento do presidente Jair Bolsonaro, investigado no inquérito sobre suposta interferência na Polícia Federal (PF), ou temas que ele demonstrou interesse em julgar e chegou a incluir na previsão, como direito ao esquecimento, cancelamento de empresas tabagistas devedoras ao fisco, ICMS na base do PIS e da Cofins. Outro caso de grande repercussão econômica, a forma de divisão dos royalties do Petróleo, foi também novamente retirado da pauta de julgamento.
Lava Jato
Internamente, as rusgas começaram cedo. Fux não deu uma coletiva de imprensa como abertura do mandato, mas concedeu uma entrevista à Veja. Nela, Fux criticou o entendimento firmado pelo plenário no sentido de entender inconstitucional a prisão antes do trânsito em julgado da ação penal. Ele foi um dos votos vencidos quando o STF voltou a proibir a possibilidade de prisão após condenação em 2ª instância.
Na entrevista, Fux disse que a jurisprudência que se firmou é de “baixa densidade jurídica” e que a Corte “não está em paz sobre esse tema e mais dia, menos dia, teremos um novo encontro com essa questão”. Após as declarações, o relator das ações, ministro Marco Aurélio, mandou um ofício a Fux, encaminhando o voto proferido, a ementa e a ata de julgamento.
No início de outubro, o presidente surpreendeu o colegiado com uma alteração regimental importante. Para impedir o que chamou de desconstrução da Lava Jato no Brasil, ele alterou a competência de processamento e julgamento das ações penais e inquéritos de volta ao plenário maior.
“Como primeiro ato praticado por mim — não quero nenhum louvor, apenas dando esse esclarecimento —, todas as ações penais e todos os inquéritos passarão pela responsabilidade do plenário. Porque o Supremo Tribunal Federal tem o dever de restaurar a imagem do país a um patamar de dignidade, da cidadania, de ética e de moralidade do próprio país”, disse, na abertura do Encontro Nacional do Poder Judiciário no fim de novembro, depois de afirmar que o STF não permitirá a desconstrução da força-tarefa.
A proposta foi aprovada à unanimidade. Mas alguns ministros, como Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes pontuaram que modificações do tipo deveriam ser apresentadas e conversadas entre eles anteriormente. “Não faz sentido a gente chegar do almoço e receber a notícia de que tem uma reforma regimental que será votada”, disse Mendes.
Embora aprovada, a implementação da emenda regimental parece ter perdido fôlego. As duas Turmas do STF decidiram que as ações penais originárias cujos julgamentos já tivessem sido iniciados não seriam levados ao pleno. Esse entendimento permitiu que investigados da Lava Jato continuassem nas turmas mesmo depois da mudança. Para remediar, o presidente do STF ainda ensaiou votar uma regra de transição que colocaria sob a batuta do plenário os casos em andamento. A sessão administrativa marcada para debater o tema foi cancelada minutos antes de acontecer.
Atritos
Apenas uma semana depois, um novo embate. Fux cassou decisão proferida pelo ministro Marco Aurélio que concedia ordem de Habeas Corpus ao traficante André do Rapp. Ao levar ao plenário o referendo da decisão, Fux foi chamado de autoritário pelo decano e teve que enfrentar, a um só tempo, críticas e elogios de um colegiado duplamente desconfortável. Se, no mérito, ninguém concordava com a decisão de Marco Aurélio, tampouco se queria chancelar a cassação operada por Fux. Com a tônica de que o papel do presidente se resume a coordenar iguais, o plenário manteve a suspensão de segurança.
No fim do semestre, novos atritos com Gilmar Mendes, num dos casos mais importantes votados pelo plenário na gestão dele até o momento. O julgamento que definiu a impossibilidade de reeleição para as presidências da Câmara dos Deputados e Senado atraiu atenções à Corte, ainda que tenha sido discutido em plenário virtual. A expectativa era que o Supremo deixasse a questão a ser resolvida pelo Congresso, como interna corporis.
Mendes, relator do caso, o pautou para o plenário virtual. Com tema de tamanha importância e impacto para a política geral do país, já que definiria a possibilidade de Davi Alcolumbre (MDB-AP) e de Rodrigo Maia (MDB-RJ) se candidatarem para novo mandato à frente do Senado e da Câmara, havia uma conversa prévia a respeito do julgamento.
Ao longo dos dias da sessão, no entanto, Fux e Luís Roberto Barroso teriam decidido por acompanhar a divergência em nome da literalidade do texto constitucional — e da pressão popular em torno do tema. Os dois e Luiz Edson Fachin votaram no domingo, num curto período de tempo entre os votos.
A reação da ala vencida foi imediata. O voto de Fux foi visto como a quebra de um compromisso que havia sido feito de permitir a reeleição das mesas do Congresso Nacional. Inconformado e acusando-o de não ser confiável no diálogo institucional interno, um dos ministros da Casa vaticinou: “A gestão de Fux como presidente acabou”.
Também na relação com o Congresso, no fim de novembro, o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), instituiu uma comissão de juristas para criar um anteprojeto de lei para sistematizar as regras de processo constitucional. No ato, Maia considera “a necessidade de consolidação, sistematização e harmonização do regime jurídico aplicável ao processamento e ao julgamento de ações de controle abstrato de constitucionalidade, das reclamações constitucionais, do mandado de segurança, do habeas corpus, do mandado de injunção e dos recursos extraordinários”, bem como a importância de se conferir atualização das legislações aplicáveis à evolução da jurisprudência do STF sobre o tema.
Fux, além de ser o presidente do órgão que tem como função cuidar desses temas, é um defensor da ideia de que o Supremo siga o caminho de aumentar a energia dedicada aos temas constitucionais, em detrimento do tempo dedicado a HCs, por exemplo. A comissão será presidida, no entanto, pelo ministro Gilmar Mendes. Da mesma forma, Fux não participou do processo de escolha do ministro sucessor de Celso de Mello, Nunes Marques.
Ao conversar com o então desembargador do TRF1 e decidir pelo nome dele para a vaga, o presidente da República, Jair Bolsonaro, disse que precisava ouvir o próprio Supremo sobre a escolha. À noite, então, foi à casa do ministro Gilmar Mendes, onde jantaram na presença do ex-presidente do STF Dias Toffoli e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). O atual presidente do STF, Luiz Fux, não foi convidado. Bolsonaro preza mais as relações pessoais do que as institucionais e ainda não tinha proximidade de Fux.
Toffoli prezava por uma relação próxima entre os chefes dos Poderes, pregava por um pacto republicano entre eles. Já Fux sinalizava uma Presidência mais contida, com maior distanciamento de políticos, especialmente aqueles sem cargos institucionais, já que muitos temas políticos e ações penais contra parlamentares chegam ao STF.
Digitalização
Na gestão interna, o novo presidente se orgulha de transformar o Supremo em uma das primeiras cortes integralmente digitalizadas no mundo, de forma a permitir aumento de produtividade do tribunal. Em 2020, o STF dobrou o número de casos apreciados por meio virtual e os trabalhos da Corte não foram paralisados pelas medidas impostas pela pandemia.
Os projetos administrativos são numerosos. Fux criou, por exemplo, o InovaSTF, um laboratório de inovação multidisciplinar, em formato de startup, para acelerar a virtualização dos serviços jurisdicionais da Corte, mediante alinhamento entre inteligência humana e artificial.
O ministro também quer internacionalizar o Supremo, com o lançamento de uma compilação em inglês das decisões mais importantes tomadas e firmou parcerias com universidades estrangeiras. Dentre elas, uma com a Universidade de Oxford para avaliar qualidade de vida de servidores do STF em teletrabalho.
Especialmente em tempos de pandemia, a modernização da Corte se mostra bem-vinda e necessária. E deixará um legado importante. Os ministros, no entanto, não são nativos digitais. Para tocar a pauta econômica e a defesa da Lava Jato como defende, Fux terá de estreitar laços internos, e de forma virtual.
JOTA, por Ana Pompeu