O comércio do Centro se reinventa para driblar a crise

Basta um passeio pelo Centro para perceber que manter uma loja com as portas abertas tem sido uma tarefa difícil. Mesmo os negócios tradicionais — como o Bar Luiz, na Rua da Carioca, que corre o risco de fechar — têm sido obrigados a se reinventar para driblar o camelô na calçada em frente, o vendedor de quentinhas, as ruas esburacadas, a insegurança, o sumiço dos clientes. O jeito é mexer no cardápio, mudar o perfil, reduzir o atendimento e oferecer mimos para a freguesia. E torcer para dar certo: afinal, o Centro foi o bairro do Rio que mais perdeu postos de trabalho no setor de bares e restaurantes este ano. Stella Imai, que administra a Casa Villarino, na Rua Calógeras, onde o jovem Tom Jobim foi apresentado a Vinicius de Moraes há 63 anos, diz que é preciso muita criatividade para tocar o negócio:

— Há o pessoal das quentinhas a R$ 10, que não têm nossos encargos nem fiscalização. A Vale e outras empresas saíram daqui. Fomos perdendo clientes. A queda chegou a 50%. Ofereço pipoca, amendoim, chocolate e caldinho nos happy hours . Já tenho 97 pratos com nomes de clientes, e coloco um por dia no cardápio. O dono do prato ou o aniversariante que leva cinco pessoas não paga. Participo de eventos, e, toda última sexta do mês, tem uma festa temática.

Das seis casas Villarino no Centro, só sobrou a matriz, com nove empregados. Em sete meses, este ano, bares e restaurantes dispensaram 540 funcionários na região, segundo dados do Ministério do Trabalho. Na cidade, foram 642 demissões no setor. 

— Que cidade queremos? Da informalidade ou do emprego? Se quisermos a cidade organizada, não pode ter gente vendendo comida na rua — diz o presidente do Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio (SindRio), Fernando Blower.

A crise atinge outros estabelecimentos também. Em dezembro, 250 lojas fecharam no Centro. Nos primeiros sete meses deste ano, as vendas caíram 4% em relação ao mesmo período de 2018.

— Todos os sete primeiros meses deste ano foram negativos para o comércio do Centro. Não vejo luz no fim do túnel — lamenta o presidente do Sindicato dos Lojistas do Rio (SindLojas), Aldo Gonçalves.

O problema tem feito o Centro perder um pouco de sua doçura. Do alto de seus 157 anos, a Casa Cavé, mais antiga confeitaria do Rio, precisou fechar o restaurante, com 50 lugares, no fundo de uma de suas duas lojas. Já a Leiteira Mineira, de 1907, do tradicional mingau, está oferecendo os pratos da casa em meia-porção, uma forma de atrair clientes. — Antes, a casa lotava no almoço. Hoje, ocupamos 65%, 70% das 60 mesas — diz José Augusto Pereira de Oliveira, um dos sócios.

“O SONHO NÃO ACABOU”

Menos clientes, menos gorjetas. Ainda assim o garçom português José Gomes de Carneiro, de 81 anos, 56 deles na Mineira, não desiste de servir:

— Gosto da profissão e de lidar com o público. Na Avenida Marechal Floriano, é a Linha 3 do VLT sem funcionar que amarga os lucros da Casa Paladino, um misto de armazém e restaurante de 1906, conhecido por suas omeletes de dar água da boca.

— Aqui fazia fila na porta. Hoje, veículos nem conseguem parar na rua — conta Antonio Rodrigues, um dos gerentes, que passou a aceitar cartão de crédito para atrair mais fregueses. Na mesma avenida, o Elizart, um dos poucos sebos que restaram no Rio, criou um site de vendas para sobreviver. Tradicional loja de tecidos, a Casa Pinto, com 80 anos na Rua Buenos Aires, abriu, por sua vez, uma cafeteria e um espaço para venda de produtos de cama e mesa, montados no segundo andar. Na Rua da Carioca — onde o anúncio do fechamento do Bar Luiz provocou uma onda de solidariedade —, em meio a tantas portas fechadas, o antigo Cinema Ideal, construído em 1905 e onde Rui Barbosa tinha cadeira cativa, virou a Maison Leffié, inaugurada no fim de 2016. O espaço para eventos tem capacidade para 600 pessoas.

— De lá para cá, só alugamos a casa para cerca de 30 eventos — conta a responsável comercial Marília Santos. Para ajudar a pagar as contas, há um ano e meio a Leffié abriu um bistrô no mezanino. A gerente Kelly Serrano lamenta que o estacionamento em frente seja usado informalmente para festas, enquanto a maison luta para se manter:

— Mas o sonho não acabou. Com 109 anos, o vizinho Íris continua como cinema, embora só exiba filmes pornográficos desde 1982. Até dez anos atrás, a programação erótica dava lugar a festas em fins de semana, o que acabou devido à dificuldade para conservar o espaço tombado. 

Na Cinelândia, é o Teatro Rival, fundado em 1934, que luta pela sobrevivência. Com o patrocínio da Petrobras terminando em dezembro, a atriz e diretora Angela Leal está em busca de apoio: 

— O Rival vai ter que se reinventar. Com seus 85 anos de resistência cultural, não gostaria de fechá-lo. Seria uma dor profunda.

Novos e velhos negócios chegam com todo o gás

Na contramão do esvaziamento do Centro, há ainda quem aposte no potencial da região. Este mês, a petrolífera Shell transferiu sua sede da Barra da Tijuca para oito andares do Edifício Ventura — um arranha-céu, com 146 metros de altura, duas torres de 36 pavimentos, cinco subsolos e heliponto — na Avenida República do Chile. Perto dali, na Ramalho Ortigão, transversal da quase deserta Rua da Carioca, três jovens alugaram uma loja e transformaram o espaço de uma antiga joalheria, fechado há três anos, no Café e Bar Desvio.

Foi no Centro o primeiro endereço da Shell, quando a empresa se instalou no Brasil há 106 anos. Funcionou nas ruas da Alfândega e Primeiro de Março. Em 2001, quando já estava na Praia de Botafogo, a multinacional migrou para a Barra. Os negócios cresceram, e ela se tornou a segunda maior produtora de petróleo e gás natural do país, com cerca de 10% da produção nacional. Era, então, o momento de se mudar. “Estar no Centro aproxima a Shell de autoridades de órgãos do governo, como Agência Nacional do Petróleo (ANP) e Ibama, e de parceiros, como Petrobras”, justifica a empresa.

Sem experiência, mas cheios de gás, três jovens decidiram desafiar os obstáculos do Centro. O produtor Bernardo Carvalho, de 28 anos, a psicóloga Thais Scot e a publicitária Anna Pitthan, ambas de 25, inauguraram em maio o Desvio, espaço que mudou a cara de um trecho onde a maioria das lojas está fechada. O negócio foi montado no imóvel que, por décadas, abrigou as joalherias Imperial e São João, a última do avô de Bernardo. Eles mantiveram alguns resquícios do passado como o lustre de cristal, os espelhos, grades e os três cofres. 

— Já fizemos cerca de cem festas e eventos — comemora Bernardo. — Não cobramos pelo aluguel do espaço. Nosso lucro é com o consumo de bebidas e salgados.

O trio “espreme” tudo que o Centro pode dar. Abre às 10h para o café. Já planeja oferecer almoço. A partir da tarde, vira point para o bate-papo após o expediente, e continua noite adentro com shows e festas. 

— Vejo muita loja fechada. É triste. A gente acredita que nosso negócio vai prosperar e que a situação vai mudar. Isso seria o normal, não? —aposta Bernardo.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *