ESG, a sigla que orienta os rumos do capitalismo

Em janeiro do ano passado, pouco antes do início da pandemia da Covid-19, uma carta aberta de Larry Fink, o CEO da BlackRock, maior gestora de fundos do mundo, causou impacto no mercado financeiro e no meio corporativo. O recado do executivo foi claro e incisivo: quem não se comprometer de fato com a sustentabilidade e a responsabilidade social vai acabar de pires vazio na mão.

Com ativos nos principais mercados globais em torno de US$ 7 trilhões (cerca de R$ 36,5 trilhões, cinco vezes o PIB brasileiro de 2020), a BlackRock dita tendência em sua mensagem anual, divulgada desde 2008. Ao defender um “capitalismo mais inclusivo” e afirmar que a sustentabilidade será seu “novo padrão de investimento”, Fink instou investidores a dar preferência às chamadas “empresas com propósito”. Foi um modo de dar ainda mais força a um movimento corporativo inescapável do século XXI, atualmente condensado em três letras: ESG, ou environmental, social and corporate governance (em tradução adaptada, “agenda ambiental, social e de governança corporativa”).

Tema de um evento promovido por O GLOBO e ÉPOCA, o ESG representa um novo modelo de gestão empresarial que valoriza a preservação do planeta (E), com a redução das emissões de gases poluentes e a gestão adequada de resíduos sólidos; a vida em comunidade (S), por meio da promoção dos direitos humanos e trabalhistas e do incentivo à diversidade; e o ambiente corporativo transparente e saudável (G), pela adoção de práticas anticorrupção e pelo respeito a valores éticos e à força de trabalho.

As empresas e instituições financeiras que têm se comprometido com os princípios do ESG não perseguem ingenuamente o vago sonho de um “mundo melhor”. Trata-se de uma resposta pragmática à crescente demanda social por mudanças nessas áreas, que vem se acelerando no rastro da preocupação com o aquecimento global e de movimentos como o MeToo e Black Lives Matter. De olho nesse contexto turbulento, fundos e bancos vêm exercendo uma pressão disciplinadora sobre o mercado, avaliando critérios para além dos econômico-financeiros. A empresa que não entra nessa onda pode perder investimentos.

Segundo relatório divulgado no ano passado pela PwC, até o ano de 2025, 60% dos fundos mútuos na Europa estarão em investimentos que consideram os parâmetros ESG. O montante chegaria a US$ 9 trilhões. No fim de 2019, o índice de adesão era estimado em 15% apenas. O relatório considera que essa virada na forma de fazer negócios configura a maior transformação na gestão de recursos em nada menos que 20 anos. Em termos globais, esses investimentos já respondem por mais de um terço dos ativos geridos, ou US$ 31 trilhões, conforme dados da Global Sustainable Investment Alliance.

O ganho de fôlego do ESG é nítido quando se avaliam as Bolsas. Em 2019, a venda global dos títulos climáticos, os chamados green bonds, chegou a US$ 255 bilhões, mais de 60 vezes maior do que o verificado seis anos antes, segundo dados da Climate Bonds Initiative (CBI). Em 2020, o crescimento foi estimado em mais de 36%. Para 2022, a projeção da CBI é que seja alcançada a marca de US$ 1 trilhão.

No Brasil, a transformação ainda é lenta. Números da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Ambima) mostram que a categoria “ações sustentabilidade/governança” representa só 12% dos fundos de ações e 1,3% do total da indústria de fundos. Mas tem havido crescimento. Em 2020, foram criados 85 novos produtos rotulados como sustentáveis, em comparação a seis em 2019, de acordo com levantamento da empresa de pesquisa sobre investimentos Morningstar. O volume captado ficou em R$ 2,5 bilhões.

Ex-CEO de multinacionais e consultora de sustentabilidade, Rachel Maia considera que o ESG exige adaptações rápidas do empresariado brasileiro. “Estamos trocando a roda com o carro em movimento”, disse ela. Foto: Claudio Gatti / Divulgação
Ex-CEO de multinacionais e consultora de sustentabilidade, Rachel Maia considera que o ESG exige adaptações rápidas do empresariado brasileiro. “Estamos trocando a roda com o carro em movimento”, disse ela. Foto: Claudio Gatti / Divulgação

A Bradesco Seguros lançou dois desses “fundos verdes” no mês passado, um de renda fixa e outro de variável. “A receptividade tem sido muito boa. Passamos de R$ 25 milhões em duas semanas de captação. A meta é que, em um ano, a gente chegue a R$ 1 bilhão”, disse Estevão Scripilliti, superintendente executivo do Departamento Financeiro e de Investimentos. Ele considera que a adesão ao ESG é “um caminho sem volta”: “Pesquisas mostram que as pessoas estão dispostas a pagar mais caro pelos produtos das empresas com esse alinhamento”.

Marta Pinheiro, diretora de ESG da XP, também atestou uma mudança de mentalidade entre investidores: “Se antes as empresas eram valorizadas apenas pela geração de lucro, hoje, só aquelas que assumirem responsabilidade pelo que está ao redor estarão aptas a competir de verdade e ter resultados consistentes”. Ela apresenta números que documentam o interesse crescente dos investidores: a XP lançou 13 fundos verdes no ano passado, cujo patrimônio líquido passou de R$ 50 milhões, em junho, para R$ 515 milhões em dezembro. No BTG Pactual, o total de ativos sustentáveis e de impacto sob custódia é de R$ 22,3 bilhões. Foram seis fundos novos de 2013 a 2021, quatro deles no último ano. Esses investimentos dão retorno. “Diversos estudos evidenciam performance mais consistente de longo prazo e menor volatilidade entre fundos ESG do que entre os tradicionais”, ressaltou Mariana Oiticica, sócia do BTG Pactual e co-head de Investimento de Impacto e ESG.

A diretora de Relações com Investidores da Natura, Viviane Behar, observou que os investidores internacionais vêm aumentando a cobrança sobre empresas brasileiras, sobretudo depois das notícias sobre o drástico aumento das queimadas e do desmatamento na Amazônia nos últimos anos. Behar acredita que a pressão internacional impulsionará mudanças positivas: “O Brasil pode se destacar mundialmente se investir mais na economia verde, se for líder em uma economia de baixo carbono e se focar no combate ao desmatamento”.

“AS NOVAS GERAÇÕES QUE ESTÃO CHEGANDO ÀS BOLSAS E AOS ESCRITÓRIOS CORPORATIVOS TÊM UMA SENSIBILIDADE AFINADA COM O ESG. E A MUDANÇA VEM TAMBÉM DOS CONSUMIDORES”­­

Essas metas ambiciosas não se realizam de imediato. Teresa Vernaglia, CEO da BRK Ambiental, maior empresa privada de saneamento básico do Brasil, lembrou que a adequação às exigências do ESG exige certo tempo de aprendizagem, mas recomendou que o país acelere os esforços nesse sentido: “O Brasil ainda responde por menos de 1% do mercado de títulos verdes do mundo, apesar do nosso potencial. Mas já há uma evolução, pois entre 2018 e 2019 quintuplicamos essas transações”.

A sigla ESG surgiu oficialmente em um documento conjunto da ONU e do Banco Mundial, em 2004, e a mentalidade que ela representa foi turbinada, em 2015, com o estabelecimento — também pela ONU — dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Mas as preocupações do meio empresarial com ética e impactos sociais remontam pelo menos aos anos 1960. As questões ambientais se fortaleceram nas décadas seguintes e se revigoraram, no Brasil, com a realização da ECO-92, quando se reconheceu o conceito de desenvolvimento sustentável.

A governança corporativa responsável começou a se consolidar nos anos 1980 e ganhou relevância com fraudes bilionárias praticadas por empresas como a Enron, que quebrou em 2001. Escândalos desse tipo solidificaram a compreensão de que não se pode prosperar sem transparência nos negócios. No Brasil, um marco nesse sentido foi a Operação Lava Jato.

Nos últimos anos, uma nova cultura de protesto social e ambiental tornou o ESG imperativo para as empresas. A necessidade de conter as emissões de carbono responsáveis por mudanças climáticas ganhou urgência com o ativismo jovem simbolizado pela sueca Greta Thunberg; o recrudescimento das desigualdades sociais amplificou a necessidade de transformações rápidas; e a defesa dos direitos das minorias e o combate ao machismo e ao racismo ocuparam o centro do debate público.

Elon Musk, CEO da Tesla, está, em tese na vanguarda da inovação sustentável. Mas a falta de transparência de sua empresa levanta a suspeita de “greenwashing”, a propaganda verde enganosa. Foto: Daniel Acker / Bloomberg / Getty Images
Elon Musk, CEO da Tesla, está, em tese na vanguarda da inovação sustentável. Mas a falta de transparência de sua empresa levanta a suspeita de “greenwashing”, a propaganda verde enganosa. Foto: Daniel Acker / Bloomberg / Getty Images

A Covid-19 veio acentuar a importância dessas pautas. “Muitas pessoas pensavam que a pandemia atrasaria a mudança, mas aconteceu exatamente o contrário”, constatou Carlos Takahashi, CEO da BlackRock no Brasil. “Com a pandemia, a gente percebeu, pela dor, quanto as questões ambientais e sociais impactam e são impactadas pela economia”, complementou Sonia Consiglio Favaretto, especialista em sustentabilidade e SDG Pioneer pelo Pacto Global da ONU. Ela advertiu que o ESG hoje é obrigatório para empresas que tenham ambições no comércio mundial: “Na Europa, se você não adotar determinadas práticas, não te aceitam. Só não entra nessa agenda o líder que está muito fora das tendências, que não tem visão”.

Há um consenso entre os mais de 20 especialistas ouvidos por ÉPOCA: o ESG é o “novo normal” do mundo corporativo e do mercado financeiro. “ESG não é modismo”, garantiu a consultora Rachel Maia, ex-CEO de multinacionais e autora de Meu caminho até a cadeira número 1 (Globo Livros), obra em que conta sua trajetória de mulher negra e periférica que galgou altos postos empresariais. O ESG, disse Maia, exige investimentos aos quais muitas empresas não estão acostumadas e que precisam ser feitos com celeridade. “Estamos trocando a roda com o carro em movimento”, afirmou. E não se aceita mais comprometimento pela metade: “Não vale ter diversidade se destruir o meio ambiente”, pregou Maia.

Ainda assim, nada impede que certas empresas assumam compromissos superficiais — ou até mentirosos — com os novos princípios. É o caso do chamado greenwashing, a propaganda verde enganosa.

No Brasil, o Conar, órgão que regula a publicidade, puniu, em 2017, três montadoras, Fiat, Ford e Chevrolet, por anunciarem qualidades “sustentáveis” que seus carros na verdade não tinham. Um escândalo bem mais grave, e de alcance internacional, foi a revelação, em 2015, de que a Volkswagen programava a injeção eletrônica de alguns de seus veículos para fraudar testes de emissão de poluentes. E até a Tesla, do CEO-celebridade Elon Musk — cujos carros elétricos estariam, em tese, na vanguarda da correção ambiental —, anda sob suspeita. A Forbes revelou recentemente um relatório da Arabesque, gestora de fundos que trabalha com critérios ESG, apontando a falta de transparência da Tesla na divulgação de dados sobre suas emissões de carbono e sobre suas metas para reduzi-las. Gigantes da “velha economia”, como Ford e General Motors, superam a empresa de Musk na exposição clara e detalhada da poluição que ainda produzem.

­ Foto: ÉPOCA
­ Foto: ÉPOCA

Não existe um instrumento único e nem uma métrica universal para aferir o engajamento das empresas. Mas há pistas. Na principal Bolsa brasileira, o Índice de Sustentabilidade Empresarial da B3 (ISE B3) mede a adesão à agenda de responsabilidade há 16 anos. A última edição, de dezembro passado, incluiu 39 empresas com 46 ações, de 15 setores, que respondem por cerca de 38% do valor de mercado da B3. Estão lá desde a Natura, cujo marketing se ampara na sustentabilidade, até a Petrobras, uma produtora de combustíveis fósseis. A participação no índice é voluntária, mas exige que a empresa assuma uma série de compromissos relativos ao combate à discriminação, à promoção de práticas inclusivas e à sustentabilidade. “Os fatores ESG deixaram de ser uma opção. As companhias os incorporam em seus processos decisórios por convicção, necessidade ou compliance. Ninguém mais vai conseguir ficar isolado ou escondido”, disse Ana Buchaim, diretora executiva de Pessoas, Marketing, Comunicação e Sustentabilidade da B3.

Outro instrumento de medição, disponível desde 2008, é a pesquisa Benchmarking do Investimento Social Corporativo (Bisc), da ONG Comunitas. Em 2019, as 303 empresas e os 18 institutos e fundações empresariais da chamada rede Bisc investiram R$ 2,5 bilhões na área social, com 46% desse montante destinados a iniciativas na área educacional. A rede dedica-se sobretudo ao S do ESG, daí a parcela ínfima, de 0,2%, dedicada ao meio ambiente.

Diretora de gestão e investimento social da Comunitas e coordenadora da Bisc, Patricia Loyola acredita que o momento atual configura a “tempestade perfeita” para consagrar a cultura ESG entre as empresas de todo o mundo: “A pandemia piorou as desigualdades, temos Joe Biden revigorando a agenda climática, empresas que saem da Bolsa por crimes raciais, a Comunidade Econômica Europeia discutindo métricas ESG”, resumiu ela.

A Amazônia, maior patrimônio ambiental do Brasil, levanta preocupações da comunidade internacional. A pressão para preservar a floresta é um incentivo para que as empresas brasileiras implementem os padrões do ESG. Foto: Michel Renaudeau / Only World / Only France / AFP
A Amazônia, maior patrimônio ambiental do Brasil, levanta preocupações da comunidade internacional. A pressão para preservar a floresta é um incentivo para que as empresas brasileiras implementem os padrões do ESG. Foto: Michel Renaudeau / Only World / Only France / AFP

No plano mundial, o levantamento Global impact at scale: corporate action on ESG issues and social investments 2020, divulgado em janeiro, compilou dados (incluindo números da Bisc) de 168 companhias representativas de 23 países e apontou que as três letrinhas estão presentes no dia a dia dos altos escalões: 70% das empresas já estão usando métricas ESG; 85% estão aumentando investimentos na perna E; e 68%, na S. A pesquisa é feita pelo Chief Executives for Corporate Purpose, coalizão internacional de líderes empresariais que abarca 200 empresas com mais de US$ 21 trilhões em ativos sob gestão.

No universo dos 3,5 milhões de investidores em renda variável na B3, hoje a faixa etária que mais cresce é a dos jovens entre 18 e 25 anos. As novas gerações que estão chegando às Bolsas e aos escritórios corporativos carregam uma sensibilidade mais afinada à preservação ambiental, à diversidade e a siglas como LGBTQIA+ — e, claro, ESG.

A mudança não virá apenas dos investidores. Analista de investimentos do Andbank, Natalia Belfort considera que o consumidor terá papel fundamental. “É preciso dar informações a esse consumidor para que ele se sensibilize e tome as melhores decisões”, recomendou Belfort. Ela citou o exemplo da indústria de vestuário, responsável por 10% das emissões mundiais de carbono. “Uma blusa de algodão gasta 2.700 litros de água para ser feita, o que equivale ao que uma pessoa bebe por dois anos e meio. De acordo com o Banco Mundial, em alguns países, 40% das roupas compradas não chegam a ser usadas, vão para o lixo.” A reutilização de roupas ou a compra de itens de brechó podem fazer uma pequena diferença nesse cenário. Também representam economia para o orçamento doméstico do consumidor. Eis o espírito do ESG: bons princípios e bons negócios não são incompatíveis.

Revista Época


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